sexta-feira, 25 de julho de 2014

INICIAÇÃO À MÁGICA, TURMA 101 – Sobre “O Aprendiz de Feiticeiro”, de Mário Quintana

Um convite ao feitiço da poesia




Mário Quintana (1906-1994) talvez seja o poeta menos estudado de nossa Literatura. Dá-se tanta importância – merecidamente é claro – a Drummond, Vinícius, Bandeira e Cabral de Melo Neto na poesia modernista brasileira que a comunidade acadêmica acaba deixando este gaúcho de lado nos conteúdos programáticos do curso de Letras. Tudo bem, eu posso até entender que é muito autor a ser estudado num curto período de tempo. Mas não acho certo que Quintana sequer seja citado nas aulas. Afinal, as poesias dele contêm todos os elementos que compõe o gênero na fase literária em que ela foi inserida, a Geração de 1945, marcada pela experimentação poética: versos ora brancos, ora rimados; métrica diversa típica da poesia da época, quando se abandonou o rigor formal; cenas cotidianas, que a mágica quintanar (como diria Manuel Bandeira) transforma em algo único. Tão fácil de entender é, que o livro é devorado em apenas algumas horas, tamanha a vontade de ler uma poesia após outra.

Deixando a Poética de lado e todo aquele didatismo analítico, apenas me atendo às impressões, toda vez que leio Quintana, e o seu “O Aprendiz de Feiticeiro”, é como se eu estivesse no meio de uma conversa agradável sobre trivialidades. O olhar do poeta sobre o comum é algo que me fascina desde que o descobri. Tudo é tema para seus versos: o dia a dia, o Amor, a mulher e até a música, como em “Jazz”. Melancólica como aquela que lhe dá título, nos faz pensar na transmutabilidade do Tempo: mesmo seguindo adiante, sem olhar para trás, algo sempre permanece como que testemunhando um evento após outro, porém indiferente, tratando os acontecimentos como sem importância.

O Anjo de Pedra que está sempre imóvel por detrás
[de todas as coisas
Em meio aos salões de baile, entre o fragor
                                                                              [das batalhas, nos comícios das praças públicas
E em cujos olhos sem pupilas, brancos e parados
Nada do mundo reflete

E como todo poeta que se preze, também Quintana faz uso da metalinguagem em poemas de um mesmo título, “O poema”. Aqui, ele revela o que pensa, e não há como não ficar intrigado com suas ideias sobre o assunto.

Um poema como um gole d’água bebido no escuro
Com um pobre animal palpitando ferido
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.

Provar o desalento nascido de alguma perda e do mistério que habita todas as coisas, daquilo que não se vê e não se sabe de onde veio – a noite, a escuridão, vendam os olhos do poeta, obrigando-o a sentir a poesia de outra maneira, levando-o a enxergá-la de outra perspectiva. Seria a solução assassinar o poeta, para que não se corra o perigo de cair no abismo? Não, ao menos não de fato; aqui, um vocábulo tão forte recebe uma conotação menos agressiva e mais irônica, servindo de instrumento a de fim de cutucar com vara curta aqueles que detratavam Quintana. Entendendo a poesia como um gole d’água no escuro e uma pedra no abismo, o autor toma a sua posição perante os colegas de verso: assassinar o poeta é matar a poesia “certinha”, “cheia de regras”, com a métrica perfeita, e dar lugar à poesia que surge no salto “vendendo súbitos espanadores de todas as cores”. Também carregado de ironia quintanar são os poemas de cunho religioso, ora questionador (“De que nos serve agora o Cristo no Corcovado?”), ora melancólico, como em “No silêncio terrível”. O fim da vida, a morte, também são temas.

O meu caixão será de mogno.
(...)
A vida é muito curta mesmo...
E as estrelas não formam nenhum nome.

Para quê tanta materialidade, luxo, se nada da vida se leva? As constelações têm nomes de deuses e heróis, seres excepcionais; mas quem deles viveu realmente entre nós? A imortalidade literal não existe, e somente aqueles que aceitam a finitude da vida entendem a beleza do efêmero e da graça do viver. Mário Quintana observava tudo, nada lhe escapava, e ele entendia e assimilava as coisas de uma forma que nos passaria batido se não fosse seus versos.

O poeta Mário Quintana, autor do livro
"O Aprendiz de Feiticeiro"(1950).

“O Aprendiz de Feiticeiro”, originalmente publicada em 1950, é uma aula de poesia que Quintana nos oferece, através dos temas mais visitados no gênero. É como um ritual de iniciação, um batismo de fogo para aqueles que ousarem adentrar o mundo mágico da poesia, através dos feitiços em forma de versos quintanares. Termino esta resenha transcrevendo o poema que eu mais gostei, por reunir toda a essência do poeta e refletir o comum como se fosse extraodinário, e o verso a forma mais original de traduzi-lo.

Ao longo das janelas mortas

Ao longo das janelas mortas
Meu passo bate as calçadas.
Que estranho bate!... Será
Que a minha perna é de pau?
Ah, que esta vida é automática!
Estou exausto da gravitação dos astros!
Vou dar um tiro neste poema horrível!
Vou apitar chamando os guardas, os anjos, Nosso Senhor,
                                                               [as prostitutas, os mortos!
Venham ver a minha degradação
A minha sede insaciável de não sei o quê,
As minhas rugas.
Tombai, estrelas de conta,
Lua falsa de papelão,
Manto bordado do céu!
Tombai, cobri com a santa inutilidade vossa
Esta carcaça miserável de sonho...


Um comentário:

  1. Só posso dizer que você torna tudo muito difícil de não se gostar.

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