quinta-feira, 20 de junho de 2013

UM SENHOR OTIMISTA – Sobre “Senhora”, de José de Alencar

            Amor, traição, casamento, tensão sexual, dinheiro... Eis os ingredientes da obra que, na minha opinião, é a mais completa do romance romântico brasileiro. Tinha que ser o José de Alencar mesmo!

Capa do livro, Editora FTD.

           Conta a boca miúda que, muitos anos atrás, num programa de auditório qualquer, o apresentador perguntou à plateia que personagem literária tinha “olhos de ressaca”; ninguém soube dizer. Porém, quando perguntou quem era “a virgem dos lábios de mel”, os presentes responderam em uníssono: “Iracema”. Tal é a força de José de Alencar, de longe o maior autor da fase romântica da Literatura Brasileira.

E talvez o mais popular até hoje, superando Machado de Assis, ícone do Realismo e criador de Capitu, a dos “olhos de ressaca” – os dois, aliás, eram muito amigos. Não sei se sabem, mas, ao contrário do que possa parecer nos livros didáticos, quase todas as fases literárias eram contemporâneas, e não raro dá para notar um sopro de uma no meio da outra – na minha opinião, “Senhora” é um exemplo disso. Calma, explicarei mais adiante.


            José de Alencar era um polemizador, e não raro suas críticas batiam de frente com os interesses da elite da época. Seus romances, os urbanos principalmente, eram o canal onde o autor cutucava certas feridas – como em “Lucíola” – sem contar os inúmeros artigos de jornal, sob pseudônimos (e tanto ele fez que conseguiu exasperar até o imperador Dom Pedro II, tido como um homem bem tranquilo). Em “Senhora”, o tema era o casamento arranjado, prática comum na sociedade brasileira daquele tempo (se bem que vemos isso até hoje, basta observar...), onde tudo era realizado como num negócio qualquer. Dificilmente você via um tema tão espinhoso nos romances românticos brasileiros. Nas mãos de Machado de Assis, ou de outro autor realista, a ótica seria diferente e talvez até óbvia, mas nas mãos de um autor do Romantismo, o tema parece um estranho no ninho. Mas estamos falando de Alencar! Seus romances sempre têm como mola propulsora o dinheiro, mas em “Senhora”, ele não é o meio que desencadeia os acontecimentos: ele FAZ PARTE de tudo, é tão protagonista quanto Aurélia e Fernando. É a obra romântica mais realista de Alencar, pois expõe o comércio do casamento como exatamente é: um comércio, uma bolsa de valores matrimonial, com uma mocinha ambígua que inventa de dar uma cotação aos seus pretendentes, como se eles fossem o dólar e o euro (ou a libra esterlina, a moeda estrangeira da época).

O autor, José de Alencar.

O próprio romance é dividido em quatro partes, nomeadas de acordo com as fases de um contrato comercial: de um lado, Fernando Seixas, um homem elegante, bem relacionado, mas que por conta de sua vida de luxos está afundado em dívidas; do outro, Lemos, tutor de uma moça rica que precisa casar logo para “não cair na lábia dos farejadores de dote”. Detalhe: Fernando JÁ É NOIVO de outra moça rica. Mesmo sabendo disso, Lemos, ciente da situação do rapaz, joga a isca já imaginando o resultado: o dote de sua protegida é de cem contos de réis, uma verdadeira fortuna, maior do que o da atual noiva do futuro “contratado”. Seixas, mesmo hesitando, não aceita de imediato, entretanto, volta atrás quando se dá conta de que o dote de Adelaide, sua noiva, não será suficiente para cobrir suas dívidas e manter sua vida de casado. Neste ponto, dá para reconhecer um toque do Realismo no romance romântico de Alencar: Fernando é um homem que põe a aparência acima de tudo, não se importando em romper compromissos que lhe pareçam desfavoráveis. Ele tem consciência de que está se vendendo, mas contanto que possa viver como está acostumado, felicidade conjugal é o de menos. Até aí tudo bem – mas ao conhecer a futura esposa...

            “Oh, que dia lindo, me sinto contente”, hein? A nova fiancée é ninguém mais, ninguém menos que Aurélia Camargo, “nova estrela que raiou no céu fluminense” (eufemismo alencariano para “nova rica”, diga-se de passagem), a moça é uma espécie de it-girl da elite carioca do século XIX – e grande amor do passado de Fernando Seixas. Tamanha “coincidência” leva o rapaz ao Paraíso... Mal sabe ele que todos os sorrisos e atenções de Aurélia escondem uma mulher ferida que articulou todo o processo de compra de sua liberdade. Dá para notar pelo estilo do autor que as ousadias a que a moça se presta, mesmo que na surdina, eram uma espécie de “justiça” contra aqueles que faziam do casamento um comércio lucrativo. Na juventude, Alencar apaixonou-se por uma jovem que o desprezou para casar-se com um homem de posses. Os sentimentos de Aurélia, no meu entender, seriam um reflexo dos do jovem e desprezado Alencar. Fernando mal consegue apreender os acontecimentos da que seria sua noite de núpcias; Aurélia lhe revela toda a verdade do noivado e arremata: ela é uma mulher traída, e ele, um homem vendido.

“– Vendido!
– Vendido sim, não há outro nome.”

É outro sopro do Realismo na obra romântica: Fernando se sente ofendido com a acusação de Aurélia, sendo que ele próprio tinha consciência de sua situação. É uma hipocrisia da parte dele; mas uma coisa é ter consciência do que o que faz não é certo, outra completamente diferente é alguém de fora lhe dizer o mesmo. Aurélia é a mulher ultrajada que não mediu esforços para devolver na mesma moeda a traição de que foi vítima, calculando cada ação com certa frieza e envolvendo todos ao seu redor, do seu tio e tutor Lemos ao melhor amigo, doutor Torquato Ribeiro. Usou de chantagem para com o primeiro, através de uma carta que este lhe enviou propondo-lhe coisas absurdas quando ela ainda era pobre; quanto ao segundo, aproveitou-se da paixão deste por Adelaide, a ex-noiva de Fernando. Seu triunfo é pôr o marido em seu devido lugar, de simples mercadoria de um comércio lucrativo. Humilhação para Fernando, que deve manter as aparências diante de todos, mas que não consegue esconder sua condição dos mais perspicazes, como Lísia Soares, numa conversa meio que indiscreta sobre o valor do dote.

Sendo Aurélia uma mulher independente e mandante da situação, tão diferente das outras de sua época, é claro que Alencar não correria o risco de ver sua protagonista ganhar a antipatia dos leitores, na maioria conservadores. Como o romance foi publicado primeiramente em folhetins, vejamos: por quase todo o romance, vemos a esposa submetendo o marido a situações no mínimo constrangedoras – imagina a cena! Para justificá-la, o autor abre antes um parêntese na história e volta dois anos no tempo para dar a conhecer ao público os motivos de Aurélia. Ficamos sabendo então de seu passado pobre, a perda do pai e do irmão, a submissão aos desejos da mãe de fazer um bom casamento, até conhecer Fernando, que, mesmo apaixonado, a abandona para ser noivo de Adelaide, a moça que, apesar de não ser muito rica, pode mantê-lo na sociedade chique de então. Aurélia desconhece os motivos de Fernando em deixá-la – ela acredita que o rapaz se apaixonou por outra – e é aí nesse momento que percebemos a mão de Lemos em toda essa história.

Lemos sempre acreditou que sua irmã Emília, mãe de Aurélia, era amante de Pedro Camargo (portanto, uma mulher da vida) e, querendo aliciar a filha dela, ele, na surdina, envolve Fernando através do pai de Adelaide para que o moço abandone a namorada; depois envia à sobrinha uma carta anônima, dizendo o verdadeiro motivo do noivado do rapaz, causando-lhe um grande desgosto. Mas seus planos de fazer de Aurélia uma mercadoria (vocês entenderam, não é?) vão por água abaixo com a chegada de Lourenço Camargo, pai de Pedro e, portanto, avô da protagonista. Ele reconhece o casamento legítimo do filho com a nora, se afeiçoa à neta, e com sua morte, a torna sua universal herdeira. Aurélia fica milionária, e ao descobrir isso, Lemos arranja um modo de se tornar seu tutor (e administrador do dinheiro, claro). Entretanto, ele não contava com a esperteza de Aurélia: de posse das missivas de Lemos, ela o chantageia para conseguir o que quer: ser dona de si (e do dinheiro, claro), morar em casa própria e longe dos parentes maternos. É o castigo de Lemos: com o olho maior que a barriga, acabou ficando com fome – pois Aurélia o mantém longe de seu círculo e de seu dinheiro. Devemos entender então, que o tio é a primeira vítima da vingança de Aurélia. Depois, obviamente, é a vez de Fernando... porém, o que ela não imagina é que o rapaz já está arrependido do compromisso com Adelaide e, mais para fazer a noiva perder a paciência do que por gosto, viaja a trabalho para Pernambuco, voltando ao Rio dois anos depois.

Com o público já convencido de que Fernando MERECE cada humilhação que Aurélia o faz passar, Alencar retoma a história do ponto onde parou, agora favorecendo o rapaz – é a partir daí que as características românticas do autor florescem ainda mais: Fernando Seixas, antes um manganão perdulário, se torna um homem de responsabilidades (se Machado fosse o autor, provavelmente Fernando teria chutado o balde...)! E o Amor que o casal sente um pelo outro acha brechas, criando momentos de ternura, ciúme e sensualidade, como na cena da valsa: sempre que leio a cena posterior, a do desmaio (imaginem, ela desmaia de emoção depois que o marido lhe dá um mero SELINHO), a sensação que tenho é que, se não fossem as malditas batidas na porta, Fernando e Aurélia teriam transado ali mesmo, no divã – podem pegar o livro e conferir: quando Alencar escreve que Aurélia sentiu “uma vibração íntima” e Fernando “queria ousar”, a tensão sexual é tão visível que até se pode afirmar que a cena é a mais perfeita descrição de tesão na literatura brasileira.

Maaaaaaaaaaas não é assim que a coisa funciona para Alencar: o amor carnal não pode se comparar ao Verdadeiro Amor. É por isso que o casamento só se consuma quando Fernando se redime completamente, já no último capítulo. Ele devolve o dote à Aurélia, na intenção de se separar. Porém, a moça se ajoelha aos seus pés, já convencida de que o homem que ama corresponde aos seus sentimentos e ambos se beijam apaixonadamente. Fernando chega a afastá-la, dizendo que o dinheiro os separou e Aurélia, como resposta, lhe entrega o seu testamento, onde o declara seu herdeiro. Nesse ponto o leitor entende porque a moça se identifica tanto com as heroínas trágicas de Shakespeare: ela passou o livro inteiro achando que morreria de amor... No entanto, ela não morre, nem o casal se separa: ficam juntos, unidos, felizes, usufruindo dos prazeres do “santo amor conjugal” (vocês entenderam, não é?)...


Sim, minha gente. José de Alencar era uma personalidade polêmica, teimosa e de língua ferina, mas acima de tudo, um otimista. Um senhor otimista, esse filho de padre!

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